"Uma vaga noção de tudo, e um conhecimento de nada."
Charles Dickens (1812 - 1870) - Escritor Inglês

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Sutilezas Literárias # 034 - José Mauro de Vasconcelos

(...)
"E foram os dois, toque-toque-toque. Deu então vontade em Zé Orocó de cantar. Olhe, que fazia muitos anos que não sentia aquele desejo! Abriu o peito, cantando as cantigas de antigamente, quando Rosinha pedia. E todas as canções tinham a canoa no meio.



"Enquanto o tempo não voa,
Rosinha, minha canoa,
Que saudades da lagoa
Onde a gente ia pescar..."

Um começo de alegria brotava no seu peito. Agora, quando se lembrasse das coisas, só pensaria em pedaços bonitos.
Foi de tardinha que se deu o grande milagre. Amarrara a eguinha passeadeira e fora fazer fogo. Iria cozinhar mais um pedaço de carne no espeto para comer com farinha. A eguinha mastigava o capim verde e tenro.
A tarde descia naquela mania de nunca ter pressa, na sábia compreensão da natureza. Zé Orocó sentou-se no chão, depois se deitou no capim. Apanhou um brotinho e ficou mastigando. "Sofrê" fazia ninho num pé de cagaia. Jaó dava pios de tristeza por todo canto.
— Que bom, não? Deu um pulo porque ouvia voz e não dissera nada.
— Que espanto é esse? Não podia crer; a eguinha estava falando.
— Você também? Eu, não, você...
Aí Zé Orocó riu. Mas riu com vontade, com aquela vontade reprimida durante tantos anos.
Parou, desconfiado ainda.
— Então, você também fala? Que bom! Aproximou-se mais do animal. O coração rebentava de alegria. Tudo voltava de novo. Poderia acreditar em Calamantã, em Urupianga. Estava livre. Livre para ver beleza, desde um zumbido de irapuã até ao nascimento de uma folhazinha. O céu voltara a ter todas as estrelas e o vento aquela carícia de mão. Até os cabelos brancos voltariam a ter beleza.
— Graças a Deus que sou louco de novo. Obrigado, Chico!
Então não se conteve. Apertou a cabeça da eguinha contra o peito.
— Você é um amor, sabe?
— Eu é que digo isso de você, Zé Orocó.
— Sabe até do meu nome, hem?
— Os passarinhos me contaram. Eu estava doida pra você me comprar.
— Verdade?
— Juro!
— Então você gosta de viajar?
— É só disso que gosto. Amanhã a gente vai sair cedo, não? A gente vai conhecer cada coisa bonita, não é?
— Se vai... Vamos estirar mais ainda esse Brasil, ver Norte, Sul, Leste e Oeste. Se puder, conhecer até o mar.
— Puxa! Que beleza! Só tem uma coisa que quero saber.
— Que foi?
— Você vai me dar um nome, não?
— Precisa?
Afastou-se da eguinha e olhou o bichinho nos olhos. Na última réstea de luz que antecede a noite ele divisou os risquinhos dos olhos dela. Mas não eram os risquinhos que divisava. Podia jurar, pelo mais sagrado, que não era. Estava vendo eram duas Rosinhas deslizando num rio calmo e distante. Teve uma ideia.
— Você gosta do nome de Rosinha?
— Não pode ter nome mais bonito!... Zé Orocó engoliu em seco e era a última vez que faria isso.
— Então você vai se chamar Rosinha! E estreitando mais a cabeça da eguinha
contra o peito que se renovava, esmagou ali brandamente um mundo de ternuras.
— Você vai ser ROSINHA, MEU AMOR."

José Mauro de Vasconcelos, em "Rosinha, Minha Canoa".
Editora Melhoramentos 

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